Decisão reconhece direitos trabalhistas de motorista da Uber e acusa a empresa de manipular jurisprudência a seu favor

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Renata trabalhou como Uber por pouco tempo, entre dezembro de 2018 e maio de 2019. Pelo serviço de motorista, recebia cerca de R$ 2,3 mil mensais. Quando parou de trabalhar, não teve nenhum direito, como é praxe com motoristas de aplicativo. Renata – o nome dela foi trocado para preservar sua privacidade – decidiu entrar com um processo contra a plataforma no Tribunal Regional do Trabalho. Ela pedia sua carteira de trabalho assinada pelo tempo que se dedicou ao serviço e os direitos trabalhistas que todo funcionário possui: FGTS, décimo terceiro, férias, contribuição para o INSS. O que ela conseguiu, porém, foi uma vitória histórica sobre a Uber.

Após perder o processo na primeira instância e recorrer, a Uber tentou um acordo. A oferta era R$ 9 mil em troca da retirada do processo e da quitação de qualquer pendência entre as partes. Ela aceitou, mas o Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro não. Diferente de um acordo extrajudicial, feito apenas entre os envolvidos no processo, acordos judiciais devem ser homologados pelo juiz ou pela turma que está julgando. O procedimento é legal e até desejado pelo Judiciário, porque permite que processos sejam resolvidos de maneira amigável e mais rápida do que o julgamento tradicional.

O acordo proposto pela Uber, no entanto, faz parte de uma estratégia maior, classificada pelo TRT-1, que negou a homologação do acordo, como “litigância manipulativa por meio de conciliação seletiva”, como diz a decisão. Ou seja, uma tentativa da Uber de, por meio de acordos, promover a criação de jurisprudência favorável em processos trabalhistas de motoristas de aplicativo. A prática foi estudada em pesquisas acadêmicas e explicada em uma reportagem do Intercept.

A decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que confirmou o entendimento do tribunal regional, saiu em dezembro de 2022, mas só foi tornada pública no dia 3 de fevereiro. O acórdão, decisão feita por uma turma de ministros, não apenas condenou a Uber ao reconhecimento do vínculo empregatício com Renata, mas deu forte embasamento para decisões no mesmo sentido.

O relator, ministro Alexandre Agra Belmonte, destacou quatro pontos que poderão garantir aos demais trabalhadores de aplicativo o vínculo. São eles: a Uber se apresentar como uma empresa de tecnologia, mas obter sua renda e motivo de existir no transporte de pessoas; o trabalhador não ser autônomo por não ter, em suas mãos, ferramentas que garantiriam a manutenção do trabalho fora da plataforma da Uber; a estratégia da empresa de interferir na jurisprudência com acordos; e a CLT definir, há mais de dez anos, que pessoas que trabalham por meio de sistemas informatizados também estão sujeitas à submissão.

Para Belmonte, a Uber “não é empresa de aplicativos, porque não vive de vender tecnologia digital para terceiros”. A decisão do juiz defende que o que a empresa vende é transporte, “em troca de percentual sobre as corridas e por meio de aplicativo desenvolvido para ela própria”. O magistrado registra ainda que apesar do “cuidado na escolha das palavras e os esforços semânticos da Uber”, o que a empresa “oferta ao mercado é trabalho sob demanda via aplicativo”.

Renan Kalil, procurador do Ministério Público do Trabalho, concorda com o posicionamento de Belmonte. Para ele, a Uber “constrói uma narrativa que a coloca como empresa de tecnologia, funcionando meramente como um instrumento de combinação entre oferta e demanda de mão de obra”, quando esse não é o caso. “Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia”, aponta o procurador.

Diferente do que propagandeia a empresa, a decisão ressalta que os prestadores de serviço não são motoristas autônomos, estando sujeitos a análises e tolhidos de importantes decisões sobre seu trabalho, e submetidos a “jornadas excessivas de trabalho, a fim de assegurar-lhes ao menos ganhos mínimos para garantir a própria subsistência, além da cobrança ostensiva por produtividade e cumprimento de tarefas no menor tempo possível”.

Ao Intercept, a Uber afirmou que apresentará recurso. “Além de não ser unânime, a decisão representa entendimento isolado e contrário ao de sete processos já julgados pelo próprio Tribunal”, disse a empresa, que criticou a manifestação do ministro relator. “Belmonte não mencionou fatos do processo específico, julgando o caso, aparentemente, baseado apenas em concepções ideológicas sobre o modelo de funcionamento da Uber e sobre a atividade exercida pelos motoristas parceiros no Brasil”, disse a Uber.

A empresa também destacou que, no Brasil, “já são mais de 3.200 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho reconhecendo não haver relação de emprego com a plataforma”. E afirmou que não adota “estratégia de litigância manipulativa” tampouco tenta “manipular a jurisprudência”. “Além de irreais, afirmações em sentido contrário pressupõem descrença na imparcialidade de milhares de magistrados trabalhistas e deveriam ser encaradas como desrespeito à independência do Poder Judiciário”, disse a Uber. Leia aqui a resposta completa da empresa.

A decisão chega no momento em que a jurisprudência sobre o assunto está em debate, com o novo governo federal estudando legislações para trabalhadores de aplicativo e empresas da economia de plataforma, como o iFood, tentando emplacar um projeto de lei que eles próprios escreveram, como contamos aqui. No TST, atualmente, há um empate no entendimento, com a 3ª e a 8ª Turmas posicionando suas decisões a favor do reconhecimento do vínculo entre motoristas e empresa, e a 4ª e 5ª Turmas se colocando do lado oposto. O assunto está sendo analisado pelo SBDI-1, a Subseção Especializada em Dissídios Individuais. A decisão tomada pelo setor deverá uniformizar a questão – e ser seguida pelos 24 Tribunais Regionais do Trabalho do Brasil.

Nós estaremos de olho.

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