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Ivi pega o trem de Ferraz de Vasconcelos até a estação Barra Funda, em São Paulo, e segue a pé para o apartamento onde trabalha há mais de 10 anos no bairro de Perdizes. Conversa com a dona da casa sobre a rotina do dia. Depois, fecha a porta da cozinha para lavar a louça enquanto ouve no celular uma aula sobre o papel da agricultura nas margens do rio Nilo no Egito Antigo. Vai para o curso da Educação de Jovens e Adultos, o EJA, no final da tarde e aproveita o dia para revisar matérias do dia anterior, com ajuda de aulas online que encontra no YouTube. Está no sétimo ano e, em 2023, estará no oitavo.
Às vezes, Ivi faz a lição enquanto almoça no apartamento onde começou a trabalhar como babá em 2010. A criança de quem cuidava hoje é um estudante universitário. O trabalho de Ivi atualmente é limpar e organizar a rotina na casa da família. Tem carteira assinada e uma patroa que insistiu muito para que voltasse a estudar. O fato de ela assistir ao noticiário da tela do celular enquanto trabalhava deixava a patroa — uma mulher branca de classe média — impressionada. Passou a pagar o Uber para que Ivi voltasse da escola para casa e evitasse o ônibus tarde da noite.
Ivi é baiana, negra, quase retinta. Veio do município de Castro Alves, quando se viu sozinha com dois filhos e precisou trabalhar para sustentá-los. O pai das crianças fez outra família e deixou Ivi na mão, sem pensão ou apoio. Restou a ela arriscar-se a vir para São Paulo, mais de 20 anos atrás. Deixou os filhos com a mãe na Bahia, enquanto corria atrás de um emprego que permitisse estruturar uma casa antes de trazê-los em definitivo. Ivi largou a escola ainda cedo, pois trabalhar era prioritário. Não queria ver a mãe chorar outra vez por não ter o que comer. Seu pai também deixou a mãe sem apoio para viver com outra família.
A retomada dos estudos tornou-se um tema recorrente nas conversas com sua patroa há pelo menos três anos. Ivi um dia admitiu que seu sonho era ser juíza. Mas resistia à ideia de voltar à sala de aula. Julgava já ter progredido o bastante para uma mulher que se viu obrigada a trabalhar desde criança. O emprego atual é o primeiro a lhe garantir carteira assinada em seus quase 50 anos de idade.
Vive numa casa alugada em Ferraz com o filho Marcelo, de 25 anos, que abandonou os estudos tempos atrás, apesar dos apelos da mãe para se manter na escola. Hoje, ele trabalha com marcenaria. A filha mais nova, Michele, já saiu de casa. Mora sozinha e trabalha numa farmácia. Terminou o colégio, mas seu sonho é ter um diploma universitário. Queria arquitetura ou administração. Mas na rede em que trabalha, há a chance de cursar farmácia.
O entusiasmo da mãe com as aulas no EJA contagiou os filhos, que começam a fazer planos de voltar a estudar em breve. Mas as dificuldades de acesso vão desanimando. Michele chegou a ganhar um pacote de aulas particulares online de uma amiga da mãe para incentivá-la.
O professor, branco, viu nela um enorme potencial, embora reclamasse de um certo desleixo em suas lições. Michele justificou que a tela do celular dificultava o acesso ao material que ele enviava para que ela estudasse. Ele ficou envergonhado ao perceber que reclamava da lição quando, na verdade, faltava um computador decente em que pudesse estudar. Para estimular a aluna, entrou em grupos de amigos no WhatsApp pedindo ajuda para comprar um computador usado. Um amigo seu se solidarizou e acabou doando um notebook.
Marcelo espera a oportunidade de retomar o supletivo. Por ora, não consegue chegar no horário da escola, porque a marcenaria não dá folga. Não recebe vale-transporte nem vale-alimentação para fazer render seu parco salário. Depende do demorado transporte público. Não tem carteira assinada.
Precisamos dar mais do que um apoio descompromissado em campanhas contra o racismo nas redes.Milhões de famílias negras do Brasil, como a de Ivi, precisam ser vistas em todo o seu contexto para terem oportunidades de progredir. Partiram de um lugar menos privilegiado que os brancos apenas pela cor. É preciso um suporte principalmente do poder público, mas também dos brancos que testemunham suas batalhas.
Ainda há brasileiros que falam com gosto que “odeiam preto” por pura maldade. E seguimos às voltas com pessoas de espírito miserável como a pediatra de Ribeirão Preto que manteve em sua casa por 27 anos uma empregada doméstica em regime de escravidão. Em pleno 2022. Não adianta olhar para o lado. É sobre nós também, que precisamos dar mais do que um apoio descompromissado em campanhas contra o racismo nas redes sociais.
O Brasil está saindo de um governo cujo ministro da Educação dizia que a universidade era “para poucos”. Poucos, nessas entrelinhas, pode ser sinônimo de “brancos”. Os estudantes negros foram os mais afetados pela pandemia, conforme análise do Itaú Social, da Fundação Lemann e do BID, e são maioria quando o assunto é evasão escolar. Muitos repetem o ciclo de Ivi, que precisou parar de estudar para ajudar em casa com o salário.
O novo governo tem planos de articular políticas específicas para ajudar a corrigir a desigualdade da população negra, como já fez no passado com as cotas raciais. Deve retomar, inclusive, o Ministério da Igualdade Racial, pois foi uma maioria de eleitores negros, assim como eleitoras mulheres, que elegeram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Logo, o novo presidente acha justo que os dois grupos tenham um ministério cada um, como tiveram nos governos petistas anteriores.
A missão de abraçar a pauta antirracista, que inclui a reflexão sobre privilégios e deveres de brancos, não cabe só ao governo da vez. Na Escola São Domingos, a poucas quadras do prédio onde Ivi trabalha, uma crise se instalou porque uma mãe negra viu a filha ser alvo de racismo por parte de crianças brancas. O diretor do colégio demorou a dar uma resposta à altura da mãe, que se sentiu lesada. Ele foi omisso para tratar a questão de racismo em sala de aula, na visão dela. Mães brancas passaram a apoiá-la. Por que algumas crianças se sentem autorizadas a expor uma suposta diferença com outros amigos?
Há uma lei específica que trata da educação que abrange a história negra no Brasil. E há um governo que promete abraçar a pauta antirracista em vias de retomar o poder. Lula está sendo cobrado a ter mais mulheres e negros em seus ministérios. Ao mesmo tempo, é criticado por querer aumentar o número atual de pastas de 25 para 37.
Só que a pauta antirracista já não é a mesma de 20 anos atrás e requer um trabalho muito mais específico para retomar o que foi destruído nos últimos anos. Ela vem com muito mais força e não pode admitir recuos. Nem do PT no poder, nem das famílias brancas, seja de escolas privadas, como a São Domingos, considerada progressista, seja de pessoas que precisam reavaliar suas posturas – e não só no discurso.
A questão da igualdade racial deve atravessar todos os ministérios.Embora ainda seja exceção, os racistas hoje começam a ser coibidos na rua por quem testemunha ataques covardes a pessoas de pele negra e se tornaram alvos de denúncia em reportagens na TV. Algo inimaginável até bem pouco tempo atrás. Não é um trunfo, mas um sinal de que não cabe mais o silêncio cúmplice de outrora. Há campanhas em redes de varejo anunciando em cartazes: “Racismo é crime”, e empresas pressionadas a contratar mais pessoas pretas em pé de igualdade com os demais.
Ainda é muito pouco diante dos índices de violência, de desigualdade salarial e de escolaridade. É preciso dar um salto verdadeiro nesse quesito. É pauta de educação das crianças brancas, e de almoço de domingo.
No governo de transição, os debates sobre a pauta negra miraram todas as áreas: educação, saúde, segurança pública e até acordos diplomáticos internacionais. A pauta não pode ser um penduricalho, como se tornou no governo Bolsonaro, ou aglutinada a outros, como aconteceu durante o governo Dilma, observa Yuri Silva, coordenador de direitos humanos no Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, que participou do governo de transição. O futuro ministro da Justiça Flávio Dino já deu seu recado nesse sentido. Nomeou negros, como a advogada Sheila de Carvalho, da Coalizão Negra por Direitos, Tamires Sampaio e Diego Galdino, para cargos chave no ministério.
A questão da igualdade racial deve atravessar todos os ministérios. A expectativa é alta, porque não podemos ser o país onde negros são espancados e torturados em supermercados, como aconteceu no Carrefour, em 2020, em Porto Alegre, ou no Atakarejo, na Bahia, em 2021. “Esta foi a eleição das nossas vidas, sobre o direito da nossa geração de viver e ser quem é, sem opressão, sem jugo de extrema direita”, disse Yuri Silva à coluna. Não há ilusões de que em quatro anos tudo estará resolvido. Que fique menos pior, sim. O governo pode dar um passo de um lado, mas os não negros precisam ser chamados à responsabilidade.
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