Reportagens investigativas que derrubaram ministros, que estiveram nos assuntos mais comentados do Twitter por semanas, que levaram quase um ano para serem produzidas, que buscam reparar erros da história: não faltaram exemplos de bom jornalismo investigativo nos países de língua portuguesa em 2022. Também não faltaram motivos para investigações.
No Brasil, o último ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro foi marcado por revelações e polêmicas envolvendo a família, apoiadores e aliados do político. Isso incluiu a prisão de um ministro do governo, investigações criminais de muitos outros e várias negociações imobiliárias suspeitas. Um prato cheio para o jornalismo investigativo brasileiro.
Bolsonaro não facilitou para a imprensa investigar seu governo. Junto com cada reportagem veio uma enxurrada de ataques a jornalistas e à imprensa. O clima hostil perdurou o ano todo. Segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, 2022 viu um aumento de 11,3% nos ataques contra profissionais de mídia. O ano também ficou marcado pela morte do jornalista britânico Dom Phiilipps (junto ao indigenista Bruno Pereira). Diante desse contexto, o Brasil ficou em 110º lugar entre 180 (entre Zâmbia e Mali) no ranking da Liberdade de Imprensa 2022 da Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
Um pouco mais abaixo no ranking da RSF, na 116ª posição, aparece Moçambique, onde um número significativo de meios de comunicação é controlado direta ou indiretamente pelas autoridades. Os jornalistas do país africano são intimidados e ameaçados com frequência para que não reportem sobre temas sensíveis.
Portugal, por outro lado, ocupa o 7º lugar no ranking mundial, de acordo com a RSF. O que não impede que os jornalistas do país também sofram ataques. Segundo a RSF, jornalistas foram constantemente ameaçados e insultados por apoiadores do partido português de extrema-direita Chega, enquanto cobriam as recentes eleições naquele país
Mas apesar de todos os desafios, o jornalismo em português resiste. Para este Escolhas do Editor, selecionamos peças que se destacaram seja por seu formato inovativo, pelo alcance e repercussão que tiveram, pela persistência de repórteres em acompanhar por muito tempo o mesmo assunto ou pela coragem de reportar sobre temas difíceis.
Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo (Brasil)
Durante sete meses, os repórteres Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, do gigante site de notícias UOL, debruçaram-se sobre os bens imobiliários adquiridos pela família do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro desde que ele iniciou a carreira política em 1990. Eles descobriram que pelo menos 51 dos 107 imóveis comprados pelo presidente ou sua família foram pagos total ou parcialmente com dinheiro vivo, compras que somam o equivalente a R$ 25,6 milhões em valores atuais.
Em outra reportagem complementar, o UOL também apontou que ao menos 25 dos 107 imóveis do clã foram comprados em situações que suscitaram investigações da justiça brasileira. Essas negociações não foram necessariamente feitas com o uso de dinheiro vivo, mas foram investigadas como exemplos de possível lavagem de dinheiro ligada a supostos esquemas de “rachadinha” (apropriação ilegal de salários de funcionários de gabinetes) no qual dois filhos de Bolsonaro e sua segunda ex-mulher são investigados. Os três negaram as acusações.
Após a publicação, as duas reportagens chegaram a ser tiradas do ar pela justiça, a pedido do filho mais velho do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro. O UOL classificou o ato como censura e recorreu da decisão. No dia seguinte, foram liberadas pelo Supremo Tribunal Federal. Nas semanas seguintes, após reclamações do próprio Bolsonaro e de seus apoiadores, o site publicou mais uma reportagem, detalhando as evidências de dinheiro vivo em cada um dos 51 imóveis.
A Mulher da Casa Abandonada (Brasil)
Uma mansão abandonada em um dos bairros mais ricos da cidade de São Paulo, com enormes buracos no telhado e sem esgoto, e uma moradora que só sai de casa com pomada branca no rosto e se apresenta com um nome falso — esses elementos despertaram a curiosidade do repórter Chico Felitti, que acabara de se mudar para a região e resolveu tentar entender o que levou a essa situação. Mas o que poderia ser apenas uma fofoca da vizinhança, se transformou em uma investigação criminal.
No podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, que logo viralizou, Felitti conta a história de uma milionária de uma família tradicional de São Paulo. Ela foi acusada, em 2000, de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por 20 anos nos Estados Unidos. Enquanto seu marido, naturalizado americano, foi condenado a seis anos e meio de prisão e teve que pagar indenização à empregada, a mulher fugiu para o Brasil, instalando-se no casarão da família.
Elas fizeram revolução (Portugal)
A Divergente é uma revista digital de jornalismo narrativo criada em 2014, em Portugal, focada em investigações aprofundadas e de longa duração de temas de interesse público que tendem a ser sub-representados na mídia. Nesta peça, a revista conta a história de duas ex-militantes do Partido Comunista Português (PCP) e investiga quem foram as mulheres que estiveram na oposição à ditadura Salazarista (1933-1974). A peça refez suas trajetórias na clandestinidade e mapeou as muitas casas e nomes que usaram, para mostrar os papéis importantes que essas mulheres desempenharam nessa luta.
Sem uma lista de nomes e casas na qual pudesse se basear para fazer sua reportagem, a repórter Rafaela Cortez consultou documentos compilados pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado sobre essas mulheres, bem como entrevistas e livros. Ela também se valeu das memórias de outras militantes que participaram da resistência em Portugal.
Gabinete paralelo de pastores controla agenda e verba do Ministério da Educação (Brasil)
Nesta série de reportagens publicadas em 2022, o jornal O Estado de São Paulo (Estadão) revelou um suposto esquema de tráfico de influência dentro do Ministério da Educação brasileiro. As reportagens afirmam que a agenda do ministro do órgão era efetivamente controlada por dois pastores próximos à família do então presidente Bolsonaro e que não tinham vínculos com o setor de educação ou cargos públicos.
Os dois pastores teriam desviado verbas e recursos da educação para alguns municípios próximos ao seu grupo, ou dos quais cobravam propina. Segundo os prefeitos que denunciaram o esquema, as propinas chegaram a ser pedidas em ouro e escondidas em pneus de veículos. Em áudio vazado, o agora ex-ministro da Educação foi ouvido dizendo priorizar verbas para os prefeitos encaminhados pelos pastores. Em junho de 2022, a Polícia Federal prendeu o ex-ministro e os dois pastores, soltando-os no dia seguinte. Eles agora estão sendo investigados, mas cada um deles negou as acusações.
A Conexão (Brasil)
Ao longo de um ano de investigação, os repórteres Allan de Abreu e Luiz Fernando Toledo reconstituíram o trajeto de um lote de madeira de ipê amarelo, extraído ilegalmente no estado brasileiro do Pará, até uma loja em Nova York. Na reportagem publicada na revista piauí, em parceria com o Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) e o Center for Climate Crime Analysis (CCCA), eles revelam uma série de irregularidades e práticas corruptas ao longo da rota que ajudaram a “esquentar” a madeira ameaçada de extinção.
A movimentação do lote de ipê também levantou suspeitas entre fiscais do Ibama, os repórteres descobriram, mas uma série de decisões do então ministro do Meio Ambiente minaram qualquer chance de investigar a venda. Esse mesmo ministro, no entanto, passou a ser investigado pela Polícia Federal em 2021 por facilitar o contrabando internacional de madeira da Amazônia. Pouco tempo depois, ele renunciou.
A máquina oculta de propaganda do iFood (Brasil)
No Brasil, o iFood é o aplicativo de delivery de comida mais popular há muitos anos. Foi também responsável pelo aumento vertiginoso da quantidade de entregadores, muitos dos quais afirmaram trabalhar mais de 10 horas por dia, sete dias por semana. Quando esses entregadores recentemente planejaram uma greve para protestar contra suas condições de trabalho, o iFood supostamente orquestrou uma elaborada contracampanha por meio de agências de publicidade.
O caso foi revelado pelo membro da GIJN, a Agência Pública, que teve acesso a diversos documentos relacionados às campanhas das agências, como relatórios, cronograma de postagens, guias com a linguagem que deveria ser adotada, vídeos e atas de reuniões internas da agência e até mesmo trocas de mensagens entre os funcionários. Procuradas, as agências e o próprio iFood negaram as informações e afirmaram que a relação entre eles era apenas para realizar pesquisa de opinião e monitoramento de postagens nas redes sociais. A reportagem foi uma das finalistas do prêmio Javier Valdez, entregue durante a Colpin.
O presente envenenado de uma mina (Moçambique)
Quinze anos atrás, quando o governo de Moçambique assinou um contrato com uma mineradora brasileira para a criação da Mina de Carvão de Moatize, na província de Tete, a expectativa era de que o carvão trouxesse benefícios financeiros e progresso ao país. Mas a realidade tem sido muito diferente. Vendida no ano passado a um conglomerado indiano por 270 milhões de dólares, a mina acumula uma lista interminável de problemas, como detalhou o membro moçambicano da GIJN, o Centro de Jornalismo Investigativo.
A investigação foi produzida com o apoio de outro membro da GIJN, o Information for Development Trust, e conduzida em parceria com a ONG moçambicana Justiça Ambiental. A equipe apresentou depoimentos de vítimas das ações da mineradora em Moatize e relatou problemas ambientais e de saúde pública na área afetada pela mineração. Entre eles, uma nuvem permanente de poeira, que causa efeitos nocivos à saúde da população local, e a falta de água generalizada, já que grande parte do fluxo dos rios locais foi desviado para a mina ou assoreado. Além disso, muitos prédios próximos sofrem com rachaduras e outros problemas estruturais – alguns até desabaram – possivelmente relacionados às explosões na mina.
“Suportaria ficar mais um pouquinho?” (Brasil)
Uma criança pré-adolescente, grávida após ser vítima de um estupro, está diante de uma juiza que deve decidir se a jovem pode ou não fazer um aborto. O procedimento normalmente é ilegal no Brasil, mas está previsto em lei em casos de violência sexual. Em nenhum momento, porém, a juiza ou a promotora informam a menina sobre seu direito ao aborto.
Os vídeos dessa audiência deveriam permanecer sob sigilo judicial, mas foram enviados ao The Intercept Brasil por uma fonte anônima. Segundo a reportagem, as imagens documentam um padrão de má conduta por parte das autoridades, que informam mal ou constrangem as vítimas de abuso sexual.
Após a divulgação da investigação, que rapidamente ganhou destaque nas redes sociais, o caso da jovem chocou o país. A juíza acabou sendo afastada do processo — após ter recebido uma promoção prévia — e foi transferida para outro local. A criança finalmente conseguiu realizar um aborto.
Recursos adicionais
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Ana Beatriz Assam é editora de língua portuguesa da GIJN e jornalista freelancer. Trabalhou no jornal O Estado de São Paulo como freelancer cobrindo diversos assuntos, principalmente com jornalismo de dados na editoria de Política. Também trabalhou na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) como moderadora de cursos de jornalismo.
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