Tirar Janio do jogo é demitir o jornalismo

1 year ago 67

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Foto: Ricardo Borges/Folhapress

O leitor de jornal, não o cônjuge traído da anedota, é o último a saber. Assim me vi na banca domingueira diante da cratera deixada pela coluna de Janio de Freitas na Folha de S. Paulo. Traído com sanguinolência rodriguiana. Corneado com todas exclamações dos berros das manchetes mais antigas.

Pode ter sido falha técnica da gráfica, pensei, enquanto consultava o mundo online – sim, sou digital, apenas o domingo é que não consigo passar sem impressos, o domingo é um dia de papel, radicalmente gutenberguiano. Você não foi traído, pobre leitor, são chifres ideológicos e polarizados que botaram na sua cabeça esquerdopata. Jamais cometeriam o desatino de tirar o Janio.

O Janio, jamais. Nessa crise braba da imprensa, o que mais um veículo carece é de um Janio. Não se fazem mais Janios. Quem tem um Janio, óbvio, o exaltará no alto da primeira página: só a Folha tem Janio. Um Janio a serviço do Brasil.

Não tem essa de “restrições orçamentárias”, como na desculpa oficial da Faria Lima (Erramos: Barão de Limeira, 425), que justifique. Passaralho algum pode levar um colunista-repórter desta envergadura. [Leia mais sobre a origem semântica do passaralho na minha coluna anterior, neste mesmo TIB].

“Janio é indemissível, mas vivemos tempos sombrios, que desconhecem o reconhecimento e o respeito”, disse a atriz e escritora Fernanda Torres, na sua coluna natalina sobre planilhas e humanidade. “Num processo longo e implacável, a Folha foi se alienando do que era e do que significava para seus leitores. Envelheceu. Janio, não. Tive orgulho de estar ao lado dele durante tantos anos”, escreveu Marcelo Coelho, ao final de um artigo sobre Cidadão Kane.

Ambos colunistas da Folha, Fernanda fica, Coelho corre – pediu desligamento do jornal por causa da demissão de Janio.

Minha dor é a dor ordinária de leitor. De quem pegava o bacurau da Várzea, nos anos 1980, para comprar o jornal na avenida Guararapes, Recife. Neste sentido subúrbio/centro, empilhei a Folha da campanha das “Diretas-Já” (84) e tive a maior aula do tal jornalismo investigativo no escândalo da ferrovia Norte-Sul (87). Só neste episódio, Janio nos poupou de um prejú na faixa dos R$ 2,4 bilhões. Uma gastança.

Dali por diante, todo repórter ganhou uma obsessão novíssima: antecipar os resultados de uma concorrência pública com um anúncio cifrados nos classificados de imóveis. Estava criada uma fórmula de denúncia que faria sucesso. Os coleguinhas usam até hoje.

Outro grande momento Janio se deu em 1983. Inesquecível. Publicou sobre uma doença cardíaca do presidente João Batista Figueiredo, o último da Ditadura Militar, que o obrigaria a pedir uma licença do cargo. Foi contestado pela equipe do general e pelos próprios colegas de imprensa.

Uma semana depois, o presidente seria submetido a cirurgia nos EUA. Janio escreveu um texto no qual reproduzia todos os desmentidos oficiais e manchetes bajuladoras da mídia. Com a pena do escracho, finalizou: “Ao general Figueiredo, pronta recuperação. Aos outros citados, também”.

Ainda no começo da trajetória nas redações, Janio arejou nosso jeito de ler os jornais. Com uma equipe do Jornal do Brasil, tirou os fios que dividiam as colunas de textos, nos anos 1950. O novo modelo vanguardista de diagramação foi copiado no Brasil e lá fora. Era o colunista já limpando a vista do leitor para os seus futuros furos históricos.

Em um país chamado Eldorado, Janio também é relevante. É lá que se passa a trama política do filme “Terra em Transe” (1967), um panorama do autoritarismo e dos conchavos tropicais. Para construir o personagem Paulo Martins, jornalista e poeta, o diretor Glauber Rocha usou como fonte as conversas que mantinha com o seu amigo Janio de Freitas.

“Para muitos leitores e profissionais da área, Janio foi cortado por razões ideológicas. Impressão galvanizada pelo corte simultâneo das colunas de Gregorio Duvivier e Marilene Felinto”, escreveu o ombudsman José Henrique Mariante, em bom e justíssimo texto sobre a dispensa do colunista-repórter.

Não importam os motivos da demissão. Foi uma decisão contra o leitor, contra o jornalismo – impresso, digital ou via tambores selvagens. Ao moço da “contenção de despesas”, pronta recuperação no mercado. Aos demais envolvidos, também.

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